Uso de inteligência artificial no Judiciário requer planejamento
A automação de tarefas típicas e repetitivas dos operadores jurídicos, como
advogados, juízes e promotores, tem se mostrado uma forte tendência nos últimos
anos, o que vem impulsionado pelo emprego de inteligência artificial.
Diversos escritórios de advocacia têm anunciado a automação de suas atividades,
com desenvolvimento de soluções internas ou por meio da contratação das
chamadas lawtechs, que são empresas especializadas em automação de serviços
jurídicos. O Poder Judiciário, por sua vez, enfrenta déficit para processar e julgar o
enorme volume de processos que lhe incumbe. Muitas das tarefas executadas na
condução e análise desses processos são repetitivas e há tecnologia disponível para
sua automação.
Ao observar os investimentos no setor privado, órgãos ou mesmo integrantes
individuais do Poder Judiciário têm buscado, em iniciativas isoladas, desenvolver
internamente, por meio da equipe de TI, ou encomendar de terceiros, ferramentas
computacionais para executar alguma atividade. Dentre essas iniciativas estão o
sistema Victor (para classificação dos recursos extraordinários vinculados a temas
de repercussão geral); a plataforma de negociação com uso de chatbot do Núcleo
Permanente de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro — além
da parceria com o MP estadual para identificação automática de ações com danos
coletivos —; e o uso, pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, de ferramenta de IA
para identificar demandas repetitivas que são julgadas em conjunto.
Por outro lado, o processo eletrônico desenvolvido no âmbito do CNJ, o chamado
Processo Judicial Eletrônico (PJe), ainda não obteve a adesão por todos os tribunais.
Alguns tribunais têm sistemas próprios, como o eProc, do Tribunal Regional Federal
da 4ª Região, usado no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina; o Projudi, usado no
Paraná; e outros têm contratado empresas de software para desenvolver o
workflow para gestão de seus processos e notificações, como o e-SAJ, contratado pelo
tribunais de Justiça de São Paulo, Amazonas, Bahia e Acre — o que implica
dispêndio de valores anuais elevados.
Não há padrão sobre o modelo de contratação desses prestadores de serviços, nem
naquilo que diz respeito ao tipo de licença de propriedade intelectual
empregada nem quanto ao acesso e tratamento dos dados do Poder Judiciário.
Diante desse quadro, é necessário chamar atenção para três aspectos que devem
estar na agenda de qualquer projeto de automação do Poder Judiciário: 1) alocação
eficiente de recursos para automação e emprego de IA; 2) política de acesso a dados
do Poder Judiciário e forma de contratação de tecnologia; 3) responsabilidade e ética
no emprego de decisões automatizadas.
1) Alocação eficiente de recursos para automação e emprego de IA
O investimento em automação pode abranger, principalmente, a tramitação de
processos (workflow), o cadastro e classificação de processos, mecanismos de busca
e extração de informações relevantes, plataformas de negociação automática, a
geração de documentos, a análise e cruzamento de dados, dentre outras aplicações.
Cada aplicação apresenta um trade off: de um lado, o custo (em termos de valor e
tempo) de desenvolvimento, treinamento e implementação e, de outro, o benefício,
em termos de economia de tempo e recursos, principalmente humanos, para a
atuação dos tribunais.
A ausência de uniformidade quanto ao sistema eletrônico de tramitação e a
multiplicação de iniciativas isoladas pode ser contraproducente para o objetivo de
alocação eficiente de recursos, uma vez que podem significar redundância, com
diferentes tribunais investindo em ferramentas semelhantes, e reinvestimento, dado
que as ferramentas de automação desenvolvidas para um sistema podem não ser
compatíveis em relação a outro, havendo custos para integração. Por outro lado, as
iniciativas individuais de inovação não devem ser desestimuladas, pelo contrário. O
importante é que haja alguma coordenação pelo Poder Judiciário, de modo que cada
iniciativa possa ter seu impacto maximizado em todo o sistema de adjudicação e
processamento eletrônico.
Considerando esse ponto, vale ao Judiciário identificar as razões pelas quais não
houve adesão integral ao PJe, buscando compreender quais são as necessidades dos
tribunais eletronicamente divergentes, que não são atendidas ou são atendidas de
modo insatisfatório. Em sistema uniforme, investimentos pelo CNJ em novas
ferramentas acopladas ao PJe podem beneficiar todos os tribunais integrados de
modo imediato.
Em segundo lugar, o investimento em sistemas computacionais deveria: (i) avaliar
as ferramentas já desenvolvidas de modo isolado, (ii) avaliar o trade off entre custos
de investimento e benefícios em termos de aumento de produtividade,
considerando as condições de cada tribunal (número de servidores, número de
processos, grau de produtividade, sistemas atualmente empregados), (iii) entender
quais ferramentas podem ser desenvolvidas internamente e quais envolveriam a
contratação de terceiros, para então, dentro de planejamento coerente, (iv) alocar
valores para tipos de aplicações e, dentro de cada tipo de aplicação, (v) desenvolver
ou contratar as ferramentas mais adequadas.
2) Política de acesso a dados do Judiciário e modelo de contratação
Na atual “economia da informação”, dados são os principais insumos para
desenvolvimento de novas tecnologias e ferramentas computacionais,
principalmente aquelas que empreguem aprendizado de máquina e processamento
de linguagem natural. Com isso, deve-se constatar que o Judiciário, concentra um
ativo valioso em seu domínio para o desenvolvimento de todo o mercado de
lawtechs no Brasil.
É importante definir política sobre como o Poder Judiciário deseja explorar esses
dados. Uma das possibilidades é a cobrança para acesso, inclusive com segmentação
entre dados gratuitos e dados já consolidados ou com algum grau de análise e
estruturação, cujo acesso seria oneroso (agregando-se valor aos dados).
Deve haver também definição quanto à forma pela qual lawtechs que prestam
serviços ao Judiciário devem tratar os dados aos quais tem acesso. Em particular,
deve haver cuidado para que a prestação de serviço e acesso privilegiado a dados
por uma lawtech não signifique uma vantagem competitiva inacessível às
concorrentes no mercado. Isso porque a prestadora de serviço pode se apropriar
dos dados e criar dificuldades técnicos ao acesso por terceiros. Nesse sentido,
inclusive, uma política uniforme e mesmo onerosa de acesso a dados pode
democratizar o acesso e oferecer igualdade de oportunidade de competição para
startups em relação a empresas já estabelecidas.
Por fim, quanto ao tratamento de dados, é fundamental o exame do tratamento de
dados pessoais não só pelo Judiciário, mas também daquelas empresas de tecnologia
que prestam serviços ao Judiciário, com a definição de regras, a serem inseridas nos
termos de contratação, para garantir que o processamento seja feito dentro dos
limites e finalidade de sua coleta, com todas as garantias de conformidade à
legislação de proteção de dados pessoais.
Em relação à contratação de serviços de tecnologia de terceiros, é importante que o
Judiciário, valendo-se de seu poder de barganha, defina a forma de licenciamento de
propriedade intelectual. Em particular, vale refletir sobre o regime de licenciamento
livre e recíproco (software livre).
A abertura do código fonte, com obrigação de reciprocidade (abertura do código das
derivações), pode trazer as seguintes vantagens (lembrando que software livre não
significa software gratuito, mas apenas acesso ao código de programação): a)
incentivo a startups e ao mercado de lawtechs para desenvolvimento de novas
soluções; b) desenvolvimento de soluções no mercado privado compatíveis e
integradas ao sistema eletrônico do Poder Judiciário, aumentando a eficiência de
processamento; c) com a reciprocidade do código, o Judiciário poderá se beneficiar
de soluções geradas no mercado privado; d) melhorias a partir de contribuições por
parte de programadores; e) incentivo à pesquisa e contribuições com a melhoria do
sistema por parte das universidades.
Há diversos graus de permissividade em relação às licenças disponíveis, de modo
que o Poder Judiciário pode formular um tipo próprio de licença, adequado aos seus
objetivos. Obviamente, o modelo pode ter variações e deve ser bem refletido de
forma a estimular o interesse de lawtechs em desenvolver produtos para o
Judiciário.
3) Responsabilidade e ética no emprego de decisões automatizadas
Em diversos países nos quais o Judiciário emprega sistemas automatizados de
tomada de decisão, é forte a preocupação com aspectos éticos. Esses sistemas podem
se relacionar à própria decisão ou à coleta e análise de dados que formulam
premissas relevantes para que essa decisão seja tomada.
Sistemas que empregam aprendizado de máquina, por envolverem modelos
matemáticos com parâmetros abertos, possuem uma dimensão de opacidade. A
escala de dados (big data) e os modelos empregados muitas vezes tornam difícil a
explicação do resultado de uma forma compreensível para o homem, com
premissas, critérios acessíveis, argumentos e conclusões. Além disso, os programas
podem sofrer vieses (discriminação) e falhas, advindas do design do algoritmo, da
forma de treinamento do programa, da base de dados ou da execução da
programação.
Tais questões trazem uma dimensão ética sobre a qual o Poder Judiciário deve
refletir, definir e divulgar seus critérios e sua política acerca da automação, forma
de revisão humana e capacidade de explicação dos processos automáticos de
decisão, de modo a legitimar o emprego das ferramentas, sem gerar questionamento
e desconfiança por parte dos destinatários e seus operadores, advogados e
procuradores.
Importante lembrar que os tribunais brasileiros não precisam do “primeiro” ou do
“mais avançado” sistema de IA do Brasil ou do mundo. Basta contar com sistema de
automação transparente, confiável, eticamente adequado e conforme às exigências
de proteção de dados pessoais. Assim, em vez de uma corrida competitiva, os
tribunais devem envidar esforços cooperativos e coordenados, com planejamento
para a alocação mais eficiente de recursos.
Juliano Maranhão é professor livre-docente da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da Fundação Alexander von
Humboldt.
Revista Consultor Jurídico, 17 de fevereiro de 2019, 7h40
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