A insuficiência da tutela individual em uma sociedade datificada

Imagine transformar seu nome, suas experiências passadas, habilidades e conhecimentos atuais, suas características físicas, seu endereço IP e tudo que está associado a ele, além de todos os dados que você produz diariamente em ativos de uma corporação. Qual seria o seu valor? Jennifer Lyn Morone registrou-se em Delaware, Estados Unidos, como uma empresa cuja única propriedade são as informações pessoais da ativista. Em seguida, expôs seus dados em uma galeria de Londres com a venda entre £ 100 e £ 7.000, o que equivaleria a R$ 651,57 e R$ 45.610,11, respectivamente.

O conceito que cada indivíduo tem sobre privacidade, sugere Alan Westin, depende, dentre outros fatores, de classe social, nível de instrução formal, estrutura psicológica e contexto em que vive, sendo mutável até para uma mesma pessoa em diferentes momentos de sua vida; o que explica as variadas reações à exposição de Morone. Apesar de radical, contudo, sua atitude reflete um movimento de resistência à crescente exploração de dados pessoais em detrimento da privacidade. Mesmo após a edição de leis de privacidade e proteção de dados ao redor do mundo, estas tendem a focar no indivíduo, dificultando a tutela deste direito por uma perspectiva social.

A privacidade é classificada por Westin em quatro estados: a solidão, a intimidade, o anonimato e o comportamento reservado, o que Kirsty Hughes reconhece depender da possibilidade de estabelecermos barreiras que controlem o acesso a nós e às nossas informações pessoais. A privacidade é essencial, por exemplo, para possibilitar que indivíduos desenvolvam sua autonomia moral e formem suas opiniões criticamente para então participar politicamente, fomentando uma sociedade mais tolerante, plural e democrática.

Uma concepção restrita do direito à privacidade poderia levar-nos a pensar que esta é uma questão individual, ou daqueles que “tenham algo a esconder”. Todavia, a datificação da sociedade torna necessária uma perspectiva que transcende o indivíduo, de forma que preservar a privacidade de todos é essencial para preservar a privacidade de cada um. Neste sentido, Daniel Solove propõe que a privacidade deve ser compreendida como uma pluralidade de situações que, apesar de não compartilharem um elemento comum único, são relacionadas entre si a partir de suas diversas similaridades.

É certo que o equilíbrio entre público e privado é, em si, político; ele varia conforme o modelo de governo, aspectos socioculturais e se reposiciona ao longo do tempo. Nos Estados Unidos, a privacidade garantida a todas as grávidas no precedente Roe v. Wade protege a liberdade individual de poder optar pelo aborto, mas esta é apenas uma forma de materialização da privacidade, a qual, inclusive, encontra-se potencialmente ameaçada conforme sugere o rascunho de sentença da Suprema Corte dos EUA vazado no início de maio. Em um novo modo de produção que se baseia na vigilância e na captura das experiências humanas como matéria-prima do mercado (Zuboff, 2021), o equilíbrio entre público e privado está em constante disputa. Portanto, um enfoque centrado exclusivamente no indivíduo como detentor de direitos enquanto titular de dados se mostra limitado.

Modelos de data ownership propõem um mecanismo de controle com o poder de escolha mais concentrado nos indivíduos, mas enfrentam problemas largamente explorados pela literatura, como a fadiga de consentimento, a assimetria de informação entre agente de tratamento e titular de dados, a ilusão de liberdade dos titulares ao “consentir” com o tratamento de dados feitos por fornecedores de produtos e serviços e o baixo valor inerente aos dados de um indivíduo quando isolados, com a consequente falta de poder de barganha e ineficiência do objetivo de redistribuir os ganhos financeiros advindos do tratamento de dados em larga escala.

Com outra perspectiva, modelos de data as labor propõem que os indivíduos dos quais se obtêm dados pessoais sejam remunerados, por considerarem que as informações geradas pelos usuários são mão de obra essencial para o desenvolvimento tecnológico. Este “trabalho” seria associado às funcionalidades de inteligências artificiais treinadas para tratar dados pessoais no ambiente digital, o que as faria ganhar eficiência e permitiria explorar problemas mais complexos.

Este aumento de complexidade demandaria maior produção de dados e inputs de usuários que seriam remunerados por essas atividades gerando um ciclo positivo de empregabilidade e distribuição de renda. Todavia, o modelo parece utópico. Independentemente do pressuposto teórico de que se parte (data ownership, ou data as labor), o efeito dos modelos é similar. O modelo de data as labor foca em controles individuais entre titular e agente de tratamento, assim como ocorre com o modelo de data ownership. Considerando-se que a assimetria de poder entre as partes se mantém, muitas das críticas ao modelo de data ownership se transplantam para cá.

Uma proposta de regulação efetiva deve considerar o elemento coletivo da privacidade, e reduzir a assimetria de poder entre os envolvidos. Os fair information practice principles (FIPPS) possuem o importante legado de orientar a regulação das atuais regras de proteção de dados. Contudo, seu foco em garantir transparência e o controle individual, principalmente por meio do consentimento, torna-os pouco eficientes para resolver as questões apresentadas. Nesse sentido, é necessário repensar o modelo de proteção da privacidade, em especial frente à datificação da sociedade. Neste sentido, é necessário considerar soluções que tomem a privacidade também por sua perspectiva social, retirando das pessoas o ônus individualmente decidir acerca dos diversos aspectos e potenciais implicações da proteção de seus dados pessoais.

 

*Co-autoria com Isadora Valadares Assunção. Originalmente publicado em JOTA.

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