Limites do Efeito Bruxelas no Digital Markets Act europeu

*Originalmente publicado em JOTA.

Ao longo dos últimos anos tem se discutido a existência e recorrente incidência de fenômeno político-comercial denominado Efeito Bruxelas. Ele diz respeito à capacidade, exercida pela União Europeia (cuja sede é localizada em Bruxelas), de promover regulação global de setores econômicos mediante promulgação de normativas internas, cuja aplicação formal é restrita ao território de jurisdição da UE.

Em outras palavras, o Efeito Bruxelas se refere ao poder da UE de regulação global, de forma que o ambiente comercial e regulatório internacional passa a se ancorar nas normas provenientes da União. O efeito se verifica em diversos setores econômicos de abrangência global, incidindo em relação a normas atinentes à proteção ambiental e à regulação antitruste, entre variadas outras, apesar de sua notoriedade no setor digital.

De uma perspectiva teórica, o Efeito Bruxelas possui cinco qualidades que condicionam sua ocorrência: dimensão do mercado, capacidade regulatória, severidade dos padrões regulatórios, objetos fixos e (in)divisibilidade. A dinâmica de tais grandezas forma cenário em que o porte do mercado consumidor exerce poder de atração sobre empresas, permitindo que jurisdições com vontade política de estabelecer regulações restritivas (caso tenham capacidade regulatória para tanto) condicionem a entrada nesse mercado, mediante normas que são inescapáveis às empresas devido ao tipo de objeto regulatório adotado (e.g. mercado consumidor) que tende a não permitir circunvenção da norma (inelasticidade do objeto) por parte dos entes regulados.

O fenômeno conta com duas formas de expressão, nomeadas de facto e de jure.

O Efeito Bruxelas de jure diz respeito à convergência de regulações ao redor do globo àquelas previamente promulgadas na UE, quando agentes políticos locais emulam ou internalizam normativas europeias. Assim, o Efeito Bruxelas de jure gera, ao redor do globo, regulações semelhantes às da UE.

O Efeito Bruxelas de facto, remete à reação dos entes regulados cujas atividades ultrapassam a circunscrição da UE e que optam por adequar suas operações a nível global à legislação europeia. Assim, ele não é condicionado à atuação legislativa de Estados.

Exemplo notório do Efeito Bruxelas ocorreu com a entrada em vigor do GDPR (2018) quando agentes de tratamento de dados pessoais promoveram alterações em suas práticas de proteção de dados para cumprir com a regulação da UE.

Nesse contexto, diversas empresas fizeram adequações de abrangência global, inclusive declarando explicitamente que aplicariam configurações de privacidade lastreadas no GDPR a todos os seus usuários independentemente de território, expandindo a legislação europeia a indivíduos ao redor do globo. Nesse cenário, tem-se sugerido que regulações provenientes da União Europeia, em especial aquelas que dizem respeito ao setor digital, necessariamente serão incorporadas em outras jurisdições, inclusive no Brasil –  quer pela modalidade de jure como ocorreu com a aprovação da LGPD, quer na modalidade de facto, por meio da mudança de comportamento dos agentes privados como resposta à regulação europeia (GDPR).

No entanto, tal previsão não tem se concretizado em relação ao Digital Markets Act (DMA) europeu. Em 06 de setembro de 2023 a Comissão Europeia classificou vinte e dois serviços ofertados por seis empresas, as quais foram denominadas gatekeepers. O DMA impõe sobre tais gatekeepers obrigações adicionais de diversas categorias, incluindo portabilidade de dados, não-discriminação, fornecimento conjunto de serviços e deveres de fornecimento de relatórios periódicos as quais têm como propósito regulatório declarado pela norma a garantia da “disputabilidade e [d]a equidade dos mercados no setor digital” (artigo 1º).

Fosse concretizado o Efeito Bruxelas de facto, a expectativa seria ver as companhias classificadas como gatekeepers no DMA transpor essas obrigações para sua prática global. Não é isso, contudo, o que se tem observado. Traço adicional necessário para que o Efeito Bruxelas seja configurado na sua modalidade de facto é a capacidade que o ente regulado tem (ou deixa de ter) de dividir suas operações a nível mundial. Há, assim, dois cenários-base possíveis: 1) Indivisibilidade das atividades, caracterizada pela incapacidade de segmentação das atividades por motivos legais ou técnicos, caso no qual o Efeito de facto tende a ocorrer. 2) Divisibilidade das atividades acompanhada de fatores que incentivam (ou não) a segmentação, como complexidade técnica, custos, etc., caso no qual a ocorrência do Efeito de facto se torna uma questão valorativa – se ‘vale (ou não) a pena’ a divisão das atividades globais.

Em razão das imposições do DMA, todos os gatekeepers (AmazonAppleGoogleMetaMicrosoft e TikTok) publicaram relatórios de cumprimento às disposições da norma fazendo menção expressa à exclusividade de aplicação dessas práticas à jurisdição da União Europeia. Apesar dessa mudança imposta pelo DMA, todos os agentes optaram por separar o mercado europeu dos demais. Ou seja, todas as companhias que poderiam haver optado por transpor as regras do DMA para suas atividades globais decidiram por não o fazer, limitando as alterações regulatórias impostas à UE e deixando, portanto, de propagar o Efeito Bruxelas de facto.

Portanto, contrariamente ao que muito vinha sido aventado sobre uma relação quasi determinista da regulação europeia sobre a atuação de agentes econômicos em outras jurisdições como a brasileira, deve-se reconhecer que o Efeito Bruxelas de facto do DMA não tem se configurado. Essa não observância do Efeito de facto é acompanhada também por críticas ao modelo regulatório que, na perspectiva de jure, tem surgido no Brasil.

No Brasil encontra-se em trâmite o PL 2768/2022, cujas justificativas demonstram explicitamente sua inspiração no DMA ao afirmar-se que “cabe introduzir uma regulação na linha da Comissão Européia [sic]”. Durante a tramitação e discussão acerca de projetos de lei, é imprescindível que sejam avaliados os efeitos que a norma proposta, caso efetivamente incorporada, exercerá sobre o os agentes regulados, em avaliação prospectiva da forma pela qual tal proposta moldará o comportamento dos atores relevantes no respectivo setor (análise de impacto regulatório).

Portanto, antes que se pule à conclusão de que se deve seguir determinado modelo regulatório – e antes de declarar a ocorrência do Efeito Bruxelas de jure no país  – é prudente a promoção de debates compreensivos acerca da conveniência de emulação das disposições do Digital Markets Act no Brasil à luz não somente das obrigações instituídas pela norma, mas dos efeitos práticos previstos com sua aplicação, e da tradição antitruste nacional que não raro diverge dos posicionamentos de autoridades europeias análogas.

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