Matriz energética brasileira e desafios da regulação ambiental internacional

*Originalmente publicado em JOTA.

Apesar de apresentar uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo em razão da alta participação de fontes renováveis, o Brasil pode não ser adequadamente reconhecido em suas capacidades por regulações ambientais internacionais. Segundo o Balanço Energético Nacional de 2024, em 2023 o Brasil gerou 87% de sua eletricidade a partir de fontes renováveis (hidrelétrica, eólica e solar), quase o triplo da média mundial.[1][2]

Destaca-se que, na geração de energia solar, o Brasil atingiu a quinta posição de maior gerador mundial, passando países como a Alemanha, e o terceiro maior na geração de energia eólica.[3] Apesar desses indicadores, o Brasil não é adequadamente beneficiado por sua matriz limpa nas novas regulamentações ambientais da União Europeia (UE)[4].

A lógica uniforme adotada por instrumentos como o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM) da União Europeia impõe exigências descontextualizadas que, na prática, penalizam exportadores com alto desempenho ambiental — como é o caso brasileiro.

O CBAM aplica um preço ao carbono embutido em produtos importados para o bloco europeu[5], como ferro e aço, cimento, fertilizantes, alumínio, hidrogênio e eletricidade[6], buscando-se evitar o que se denomina carbon leakage — a migração de indústrias intensivas em carbono para países com padrões ambientais menos rigorosos.

Contudo, a padronização adotada pelo CBAM e por outras normas da UE parece ignorar os diferentes perfis energéticos dos países exportadores,[7] impondo a mesma lógica de rastreabilidade, certificação e compensação de carbono a economias com níveis muito distintos de emissões.

A tensão entre a narrativa de transição energética justa e os efeitos assimétricos das normas europeias evidencia um paradoxo central da atual governança climática: o descompasso entre a intenção universalista da regulação e os contextos específicos dos países do Sul Global. Isso se concretiza em uma assimetria na qual os países do Sul Global, mesmo aqueles com alto desempenho ambiental, arcam com custos desproporcionais para acessar mercados internacionais.

A situação brasileira exemplifica esse paradoxo. Apesar de sua matriz elétrica amplamente renovável — composta por fontes como hidrelétrica, eólica, solar e biomassa —, produtos nacionais podem ser penalizados com taxas de carbono adicionais.[8] O resultado é uma precificação ambiental que ignora os ganhos já internalizados pelas cadeias produtivas brasileiras e impõe uma dupla penalidade: por um lado, o custo adicional da adaptação às exigências europeias; por outro, o apagamento institucional de práticas sustentáveis locais consolidadas.

Isso ocorre porque o foco da regulação europeia está na emissão setorial bruta, sem considerar a contribuição da energia limpa para a redução da pegada de carbono dos bens industrializados[9].

Alguns exemplos são a desconsideração do aço brasileiro possuir baixa intensidade de carbono, pois o CBAM desconsidera emissões indiretas, penalizando produtores brasileiros; o não reconhecimento da CBAM de siderurgias brasileiras utilizarem carvão vegetal na produção de aço e, por fim, projetos de compensação de carbono não reconhecidos pelo CBAM[10], pela não equivalência regulatória entre os critérios, o que inviabiliza o reconhecimento de projetos certificados nacionalmente — mesmo quando baseados em metodologias robustas e auditáveis.

Essa seletividade na mensuração e na comunicação pode gerar distorções na reputação internacional do país e limita sua competitividade em mercados de alto padrão ambiental.

A ausência de parâmetros mais justos e que integrem as especificidades energéticas dos países exportadores nos modelos de avaliação ambiental europeus compromete a legitimidade da governança climática transnacional.

Um caminho possível para equilibrar estes interesses seria a incorporação da matriz energética nacional como critério de equivalência regulatória, por exemplo reconhecendo que produtos manufaturados em contextos energéticos menos emissores devem ter tratamento diferenciado.

Para o Brasil, a revisão desses critérios — por exemplo com a integração de métricas energéticas nacionais nos modelos de avaliação ambiental e de intensidade de carbono da UE em relação aos países exportadores — seria estratégica, já que a maior parte da eletricidade usada na indústria nacional tem baixo impacto climático — o que não é devidamente valorizado nos modelos atuais de precificação de carbono.

A desconsideração, ainda que parcial, dos avanços ambientais de países em desenvolvimento inclusive compromete a legitimidade da governança ambiental global. Vale considerar que regulações como o CBAM, embora não tenham o objetivo de criar barreiras não tarifárias, podem acabar por, de maneira não intencional, excluir produtores de economias emergentes, ampliando desigualdades históricas no comércio internacional.

No caso brasileiro, essa exclusão, segundo estudo da Way Carbon em conjunto com a ICC Brasil, afeta especialmente grandes exportadores de commodities, por criar restrições e tributações que podem impactar uma perda de renda de até US$ 444,3 milhões na exportação de seus produtos[11].

Essa discrepância imposta por medidas unilaterais ressalta a necessidade de lidar com questões como ajustes de carbono na fronteira, alegações ambientais e outras medidas comerciais relacionadas ao clima buscando medidas consistentes e equitativas entre os países,[12] sob o risco de se erodir a coesão normativa da regulação climática internacional. Sem coordenação, em vez de promover convergência, pode-se acirrar assimetrias históricas entre países emissores e aqueles que, como o Brasil, já operam com baixas emissões estruturais.

Esse desalinhamento compromete a inclusão de fornecedores do Sul Global em cadeias de valor sustentáveis, sobretudo quando esses são percebidos como investimentos de alto risco regulatório, apesar de contarem com políticas públicas robustas de proteção ambiental e produção agrícola sustentável. A desconexão entre a regulação internacional e as realidades locais amplia a distância entre os objetivos declarados de justiça climática e os efeitos práticos de sua implementação.[13] 

Para que a transição energética seja efetivamente global, é necessário que as regulamentações climáticas considerem as especificidades estruturais de cada país — incluindo sua matriz energética, capacidade institucional e estágio de desenvolvimento. O reconhecimento internacional dos esforços empreendidos por países com trajetórias limpas, como o Brasil, não apenas fortalece a cooperação multilateral, mas também gera incentivos positivos para o avanço de soluções sustentáveis.

Nesse sentido, a estratégia energética all of the above[14], lançada pelo Banco Mundial em abril deste ano, representa um avanço relevante. Ao incluir diversas fontes de energia como gás natural, geotérmica, hidroelétrica, solar, eólica e nuclear, o programa de financiamento se permite adaptar a cada contexto regional. Essa iniciativa reflete a política fundacional do ciclo virtuoso para ampliar o financiamento do setor elétrico. O objetivo é gerar incentivos para ampliar o uso e resultados da energia verde[15].

A presidência brasileira no G20 e a realização da COP30 em Belém colocam o país em posição estratégica para liderar uma agenda de transição ecológica mais inclusiva, que reflita a diversidade de matrizes energéticas globais e proponha critérios de equivalência mais justos. Mais do que defender isenções específicas ou ajustes tarifários, trata-se de reconfigurar os termos do reconhecimento ambiental internacional — de modo a refletir, com mais precisão, os aportes climáticos efetivos de países como o Brasil.

A transição ecológica não será global se for seletiva. E não será justa se não for responsiva às diferenças estruturais entre os emissores históricos e os países que, como o Brasil, têm investido em trajetórias energéticas limpas. Reequilibrar a matriz normativa da regulação climática internacional é, hoje, um desafio não apenas técnico, mas político — cuja resposta definirá os contornos de uma sustentabilidade realmente inclusiva.


[4] Legal Grounds Institute. Green Claims Report: Impacts of European Union’s Regulations on Brazil. 2023, p. 26

[7]  Legal Grounds Institute. Green Claims Report: Impacts of European Union’s Regulations on Brazil. 2023, p. 107

[8]Legal Grounds Institute. Green Claims Report: Impacts of European Union’s Regulations on Brazil. 2023, pp. 116-117

[12] Legal Grounds Institute. Green Claims Report: Impacts of European Union’s Regulations on Brazil. 2023, p.109

[13]  Legal Grounds Institute. Green Claims Report: Impacts of European Union’s Regulations on Brazil. 2023, p.116

[15] SCALING UP TO PHASE DOWN: Financing Energy Transitions in the Power Sector (content), p. 10

Ao usar nosso site, você concorda com nossa Política de Privacidade e uso de cookies.