Mercados digitais: uma regulação retrospectiva?

*Originalmente publicado em Jota.

Na cerimônia que sancionou o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente Digital, o governo encaminhou ao Parlamento o PL 4675/2025, destinado a regular a concorrência nos chamados “mercados digitais”, que denota um conjunto de diferentes mercados relativos a serviços online, como redes sociais, buscadores, streaming de áudios e vídeos, lojas de aplicativos, marketplaces etc.

O projeto, elaborado a partir de estudo realizado pelo Ministério da Fazenda, mira agentes que possam ter não apenas poder econômico, como também “relevância sistêmica” naqueles mercados.

Embora o conceito não seja precisamente delimitado, o foco está em empresas que, além de possuírem faturamento mínimo global de R$ 50 bilhões ou de R$ 5 bilhões no Brasil, possam controlar o acesso a usuários e a dados pessoais e comerciais estratégicos em múltiplos serviços digitais interrelacionados.

Para lidar com essa preocupação, o PL propõe a ampliação dos poderes ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para não só reprimir condutas infratoras à concorrência, mas também estabelecer certas obrigações e proibições de condutas comerciais a empresas selecionadas, mesmo antes de realizadas (ex-ante) – portanto, sem constatação de dano – e independentemente da ponderação de  eventuais eficiências ou benefícios aos consumidores finais decorrentes da prática.

Ou seja, a conduta por uma empresa designada como de risco sistêmico passa a ser, no jargão antitruste, proibida per se, a não ser pela possibilidade de admiti-la por aspectos de segurança da informação ou que melhorem a funcionalidade do “ecossistema” em relação a outros players, em serviços complementares ou interligados.

A motivação para extrapolar o padrão ex-post de repressão a infrações nos mercados digitais, segundo o estudo da Fazenda, decorre da dificuldade em se compor uma “teoria do dano”, com a metodologia antitruste tradicional e o excessivo tempo de análise, de modo que as ferramentas disponíveis seriam incapazes de enfrentar uma posição consolidada por décadas de domínio de grandes empresas de tecnologia, decorrente de aspectos estruturais, que criam barreiras a novos entrantes, e de novos tipos de conduta capazes de restringir o desenvolvimento de concorrentes. Enfatiza-se que o objetivo não é atuar contra empresas digitais pelo seu “tamanho”, mas pelos problemas técnicos, estruturais e comportamentais apontados naquele estudo.

Porém, o olhar concentrado no que ocorreu nas últimas décadas traz alguns sintomas, no texto do PL, que podem impactar negativamente a economia nacional.

O principal deles é o período de designação de dez anos, no qual o agente designado como de “relevância sistêmica” fica sujeito a imposições de obrigações e proibições na sua atuação. O tempo parece insensível à recente dinâmica do mercado, que viu, em menos de cinco anos, despontarem empresas inovadoras com produtos que cresceram exponencialmente, como o TikTok, entre as redes sociais, o ChatGPT, as lojas de varejo online chinesas Temu e Shein, dentre outros, que exerceram fortes pressões competitivas sobre as líderes em diferentes serviços digitais.

Particular atenção deve ser dada à IA generativa, que não pode ser vista apenas como uma ferramenta para aprimorar serviços digitais existentes: é uma força disruptiva que desafia mercados antes consolidados. Um exemplo é a multiplicação de mecanismos de busca com IA que miram o mercado liderado pelo Google e o levaram a incorporar funcionalidades de IA generativa aos seus serviços. O Adobe Photoshop, por sua vez, foi significativamente desafiado por ferramentas de geração de imagens como Midjourney e Stability AI e respondeu criando seu próprio gerador.

Plataformas de transporte por aplicativo já são pressionadas pelo avanço de veículos autônomos e investem na tecnologia, ao passo que assistentes pessoais de IA ameaçam diferentes sites e marketplaces. Como já digerem a informação presente na internet para fazer recomendações personalizadas, esses assistentes podem, em tese, reduzir a dependência da busca e navegação com múltiplos cliques, colocando em xeque a exploração de publicidade que é chave no atual modelo de negócios para o setor.[1]

A hipótese de que os mercados de IA serão dominados pelas atuais líderes em serviços digitais, afirmada em conjunto, no ano passado, pelas autoridades antitruste europeia, estadunidense e britânica,[2] parece alheia às evidências. Não só supostas barreiras de capacidade computacional, expertise e acesso a dados vem sendo erodidas por inovações, como também não estão presentes nos mercados de IA as características que trouxeram preocupações quanto a concentração nos mercados digitais (não há custo marginal tendente a zero, não há efeitos de rede e o feedback-loop de dados é limitado, por exigir qualidade, não quantidade, e não estar baseado no modelo de publicidade direcionada que explora dados pessoais).[3]

Essa disrupção em curso e a todo vapor faz os dez anos de designação parecerem absolutamente descabidos e permite desconfiar da adequação de outros dispositivos presentes no PL.

Primeiro, a designação é baseada em critérios não cumulativos, bastando, por exemplo, que uma empresa com integrações verticais em mercados adjacentes e acesso a grandes quantidades de dados pessoais seja designada, um potencial enorme para “falsos positivos” quanto a risco sistêmico. Esse conceito abrange não só empresas já consolidadas, capturadas pelo “olhar para trás”, como pode também, se “não olharmos para frente”, enrijecer novos players que, em vez de risco sistêmico, tem trazido, como indicado acima, “benefício sistêmico”.

Segundo, o PL elenca tipos de condutas que o Cade pode especificar como obrigatórias ou proibidas aos agentes designados. Essas condutas abrangem não só potenciais infrações, tais como vedação a discriminações ou a limitações de acesso, mas também os chamados “remédios” para condutas infrativas.

Ou seja, inclui obrigações de transparência e fatores de fomento, como portabilidade de dados ou interoperabilidade, sem necessidade do Cade demonstrar a proporcionalidade dessas medidas em relação a problemas concorrenciais. A inclusão de remédios no rol de obrigações pode tornar o Cade verdadeiro regulador, com significativa discricionariedade, do ambiente digital e não apenas órgão de repressão e prevenção à concorrência.

Intervenções regulatórias em mercados com tal grau de inovação, como o vivido pelos digitais perante a IA, podem ser contraproducentes. Exemplo recente foi a instauração de procedimentos para apuração de atos de concentração (APACs) pelo Cade, ainda em aberto e prestes a aniversariar, em relação a parcerias entre serviços digitais e startups de IA.[4]

O Cade, inspirado por medida adotada (e logo descartada) pela autoridade concorrencial britânica, cogitou que aquelas parcerias fossem uma reedição, em novas vestes, das chamadas “killer acquisitions”, nas quais aquisições de entrantes inovadores por empresas líderes não foram detectadas como potencialmente anticompetitivas pelas autoridades.[5] Ocorre que tais parcerias têm sido o grande vetor de diferenciação e competição nos mercados de IA, com reflexos positivos inclusive sobre os serviços digitais.[6] O questionamento pelo Cade, sem conclusão célere, pode infligir insegurança jurídica e inibir tais acordos pró-competitivos.

Por fim, chama a atenção um aspecto processual. O projeto propõe procedimento que dure no máximo 365 dias para designação e mais 365 dias para especificação de conduta, o que pode ocorrer simultaneamente. Neste intervalo, o período correspondente a oportunidades formais de defesa soma apenas 45 dias, o que parece desequilibrado.

O mais importante, porém, é a ausência de mecanismos de ajuste de condutas, por meio de acordo. Com todas as nuances dos mercados digitais, é possível que, em diferentes contextos, a modificação da conduta, naquilo que é considerado potencialmente danoso, possa solucionar o problema sem prejudicar potenciais benefícios em termos de diferenciais competitivos ou melhoria do serviço para usuários finais.

Tal oportunidade de ajuste reduziria riscos de intervenção por essa nova face reguladora do Cade, além de, mais uma vez, fazer lembrar que potenciais benefícios de uma prática ao mercado e aos consumidores deveriam sempre ser parte de qualquer análise antitruste, seja nos canais digitais, seja nos canais físicos.


[1] MARANHÃO, Juliano. The New York Times versus OpenAI. A crise do jornalismo e da proteção autoral frente às inteligências artificiais generativas. JOTA, 13 jan. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/the-new-york-times-versus-openai. Acesso em: 29 set. 2025.

[2] COMISSÃO EUROPEIA, COMPETITION & MARKETS AUTHORITY, DEPARTMENT OF JUSTICE, FEDERAL TRADE COMMISSION. Joint Statement on Competition in Generative AI Foundation Models and AI Products. 23 jul. 2024. Disponível em: https://competition-policy.ec.europa.eu/about/news/joint-statement-competition-generative-ai-foundation-models-and-ai-products-2024-07-23_en. Acesso em: 29 set. 2025.

[3] LEGAL WINGS INSTITUTE. Competition in AI markets – Full report (No prelo). Setembro 2025.

[4] CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA (CADE). Procedimentos para Apuração de Ato de Concentração n° 08700.005961/2024-19 (sobre a relação entre Microsoft e Mistral AI); 08700.005638/2024-37 (sobre a relação entre Google e Character.AI); 08700.005962/2024-55 (sobre a relação entre Amazon e Anthropic).

[5] MARANHÃO, Juliano. IA e o risco do medo. Risco parece inadvertido quando impulsos de autoridades reagem a alarmes contra a tecnologia. JOTA, 28 out. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/ia-e-o-risco-do-medo. Acesso em 29 set. 2025.

[6] MARANHÃO, Juliano et. al. Competition in AI markets – Full report. LEGAL WINGS INSTITUTE, Setembro 2025. (https://www.legalwings.com.br/_files/ugd/df689d_5bc2e9363a0f42d7953305b98d88c9c3.pdf)

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