Regulação de plataformas com base em evidências
*Originamente publicado em Valor Econômico
O Ministério da Fazenda publicou, recentemente, relatório contendo análise sobre osdesafios concorrenciais nos chamados “mercados digitais”, conceito um tanto vago,que contempla diferentes tipos serviços on-line, como serviços de busca,marketplaces e redes sociais, os quais vêm sendo objeto de debate em função daconcentração de mercado e o papel das grandes plataformas digitais, as chamadasbig techs, na dinâmica concorrencial.
O debate gira em torno da necessidade ou não de se estabelecer restrições àatuação de big techs nos seus respectivos mercados, estabelecendo para essas umregime especial de competição, como forma de estimular a atuação competitiva deentrantes e, assim, aumentar a contestabilidade desses mercados. Além desseobjetivo de estímulo à competição, fala-se em enfrentar uma espécie de “falha deecossistema”, o que diz respeito a uma distribuição mais justa dos ganhos entre osdiferentes agentes nos diversos serviços complementares que giram em torno degrandes plataformas digitais.
Ao examinar iniciativas internacionais de regulação, o Ministério da Fazenda fazimportante constatação: não há consenso.
Alguns países optaram por manter intacta a legislação de defesa da concorrência,outros por aperfeiçoamentos procedimentais na legislação para especializar ouacelerar a análise ex post (contextual) de condutas. Outros pela imposição deproibições ex ante a certas práticas, mas com diversas abordagens e graus dedetalhamento. Nessa miríade, a sugestão do Ministério da Fazenda seria algopróximo ao modelo britânico, em que o Cade receberia poderes para estabelecerproibições de condutas a plataformas indicadas como dominantes, para algunsserviços, no intuito aumentar a contestabilidade, ou seja, a possibilidade de rivais ouentrantes exercerem pressões competitivas para impulsionar a concorrência.
Sobretudo, o Ministério da Fazenda, sabiamente, indica cautela, a partir de novodebate legislativo, distinto do Projeto de Lei (PL) nº 2768/22, que atualmente tramitana Câmara dos Deputados e se assemelha à lei europeia, o chamado Digital MarketsAct, com imposição de proibições ex ante, já no âmbito legislativo, quanto acondutas discriminatórias, recusa ou criação de dificuldade de acesso a plataformasdigitais e tratamento inadequado de dados pessoais, que possa trazer vantagenscompetitivas.
A cautela do Ministério da Fazenda é sábia, pois proibições ex ante podem impedirpráticas comerciais capazes de trazer eficiências compensatórias que, apesar decriarem vantagens competitivas aos agentes que a desenvolvem, acabam porbeneficiar os usuários. Note que a defesa da concorrência não tem por fim combatera concentração de mercados em si, mas proteger o investimento em diferenciação einovação, propiciando mais opções e vantagens aos consumidores finais, aspectocrucial na dinâmica dos serviços on-line.
Na nossa legislação antitruste, apenas a formação de cartel foi, em 2011, por lei,tornada uma proibição ex ante. Isso porque o Cade, nos doze anos anteriores,condenou absolutamente todos os cartéis detectados, não encontrando qualquerjustificativa comercial econômica para a prática, nos 52 casos analisados no período.Em contraste, nos últimos 10 anos, para a prática de discriminação comercial, umdos alvos do debate regulatório atual, apenas 27% dos casos detectados foramcondenados pelo Cade, nenhum deles no segmento digital, sendo os demaisjustificados por razões comerciais contextuais ou por trazer eficiênciascompensatórias aos consumidores.
Assim, a sugestão inicial do Ministério da Fazenda para o debate pode colocar oCade em dilema entre o erro e a trivialidade. Caso não haja sucessivos precedentesde condenação de prática específica em determinado serviço digital, sua proibiçãoex ante pelo Cade pode, além de gerar insegurança, trazer o risco de se sacrificarpotenciais eficiências e inovação, prejudicando consumidores. Caso contrário,havendo sólida jurisprudência no sentido de que a conduta no mercado digital nãotem qualquer perspectiva de gerar eficiências ou inovação, apenas prejuízo aomercado, um enunciado proibitivo pelo Cade teria pouco efeito, apenas sintetizandoos precedentes, sem a força vinculante de uma lei.
Não seria melhor equipar o Cade com alterações legislativas procedimentais,algumas inclusive já sugeridas pelo Ministério da Fazenda, e então aguardarprecedentes firmes de condenação pela autoridade de antitruste para proibirlegalmente práticas on-line anticompetitivas, que, segundo a experiência observada, não tenham qualquer perspectiva de trazer eficiências econômicas e benefícios aosusuários? Essa seria uma abordagem regulatória baseada em evidências.
Os esforços de regulação nesse campo, em diferentes jurisdições, têm sidoretrospectivos, olhando para o histórico de concentração de big techs. Mas todaregulação deve, antes, ser prospectiva. E se nos concentrarmos nessa prospecção, aevidência atual que salta aos olhos é a ascensão das inteligências artificiaisgenerativas, que trouxeram novos mercados e novos atores econômicos robustosno cenário digital, como a Open AI, e acirraram a rivalidade entre as plataformas, emuma corrida frenética de investimentos, alianças e incorporação de IA nos diferentestipos de serviços. Todo esse movimento parecia impensável há alguns anos, no iníciodas discussões e propostas sobre regulação das plataformas digitais.
O debate proposto pelo Ministério da Fazenda é válido e deve avançar a partir deestudos e evidências, mas é sempre bom lembrar que o esforço do Estado emfomentar a concorrência pode ser novamente superado pelas forças criativas subjacentes à dinâmica invisível da própria concorrência.