Standard de prova adotado pelo Cade em casos de cartel

*A imagem utilizada nesse artigo foi criada por uma inteligência artificial generativa.

**Originalmente publicado em Conjur.

O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), ao investigar infrações à ordem econômica, sobretudo condutas coordenadas, emprega um conjunto diversificado de elementos probatórios, dentre os quais as provas indiretas, unilaterais ou de terceiros, modalidades que têm por característica comum a necessidade de um juízo dedutivo para se chegar à conclusão de que um fato ou circunstância ocorreu.

No entanto, a utilização de provas indiciárias para a formação do juízo do Tribunal do Cade exige especial cuidado para que seja observado o devido processo legal, apontando a jurisprudência do Cade para a impossibilidade de fundamentar juízos condenatórios exclusivamente neste tipo de prova.

Mas esse padrão de exigência de provas para condenações ainda é observado pela Autarquia? Para responder a esta pergunta, foram analisados casos de cartéis julgados de 2022 a 2023, excluídos aqueles que não apresentavam discussões relevantes sobre standard probatório, provas indiretas, unilaterais ou de terceiros.

Na maioria dos casos, a utilização desses tipos de prova exige que sejam complementadas por outras evidências da participação da empresa acusada na conduta anticompetitiva, incluindo, mas não se limitando a, testemunhos, listas de presença e registros telefônicos.

Isso porque, isoladamente, tais provas são geralmente insuficientes para fundamentar a condenação de uma representada por participação em cartel.

Contudo, a extensão do conjunto probatório pode, excepcionalmente, ser considerada bastante para a condenação mesmo que seja composto apenas de provas indiretas e/ou unilaterais. Nota-se, ainda, que em qualquer dos casos o standard probatório para condenação de pessoas físicas é mais alto do que para pessoas jurídicas.

Provas indiretas
As provas ‘indiretas’, ‘indiciárias’ ou ‘circunstanciais’ são definidas em lei pelo artigo 239 do Código de Processo Penal que as caracteriza como o elemento que, tendo relação com um fato, permite por indução que seja afirmada a existência de outro.

Dessa forma, a prova indireta possibilita alcançar a comprovação de um fato secundário, inferindo sua veracidade a partir de indícios não diretamente relacionados ao evento. Por isso, geralmente, provas indiretas isoladas não são capazes de sustentar uma condenação.

O conceito de provas indiretas e sua aplicação têm igual incidência no processo administrativo, conforme estabelece o Cade, inclusive no Guia “Recomendações Probatórias para Propostas de Acordo de Leniência com o Cade”, elaborado pela própria autarquia:

“São provas indiretas ou circunstanciais aquelas que não comprovam diretamente o acordo, mas situações úteis para a compreensão da conduta julgada, eventualmente permitindo assumir que eles ocorreram por meio de inferências lógicas. Tratam de ‘um fato diferente, a partir do qual se pode extrair uma conclusão acerca do fato principal’. Assim, ‘a prova oferece ao julgador informações que podem ser usadas somente como premissa de uma inferência que tenha como conclusão um fato principal do caso'”. (grifos dos articulistas)

Apesar de não vedar a possibilidade de condenação exclusivamente baseada em provas indiretas, é claro na jurisprudência do Cade que a decisão deve se basear em um conjunto probatório extenso, não somente provas indiretas isoladas.

Conforme a prática internacional consolidada de uso de provas indiretas na persecução de cartéis e a recomendação da OCDE, deve haver análise de circunstâncias indiretas de forma holística, privilegiando um ponto de vista cumulativo, ao invés da análise individualizada de fatores de forma que a cumulação de provas individualmente mais frágeis poderia, no todo, vir a apresentar um panorama robusto de evidências. Ainda, essas considerações devem ser balizadas pela existência — ou ausência — de explicações alternativas plausíveis aos indícios avaliados. Somente neste cenário seria então possível a condenação por meio de provas circunstanciais.

Provas unilaterais ou de terceiros
Provas unilaterais dizem respeito àqueles elementos probatórios confeccionados por somente uma das partes, mas que atingem a terceiro ou à outra parte de determinado caso. A partir do Guia de Recomendações Probatórias do Cade, verifica-se que provas produzidas por terceiros, quando consideradas de maneira isolada, seriam insuficientes para comprovarem a participação de uma representada na conduta investigada, mesmo que o restante do acervo probatório demonstre a configuração do conluio e demais representados sejam condenados.

Um caso elucidador dessa posição é o PA do cartel no mercado nacional de sistemas térmicos automotivos. Conforme o voto condutor do presidente Alexandre Cordeiro Macedo, provas “produzidas unilateralmente pela Signatária” como o caso de “comunicação interna entre funcionários [de uma…] sem participação direta de funcionários [da outra]” não permitem concluir pela participação em cartel.

Contudo, a extensão das evidências também deve ser considerada, já que a posição acima não foi seguida de forma absoluta em todos os casos.

No PA do cartel no mercado de cabos subterrâneos e submarinos, por exemplo, o Tribunal do Cade alcançou diferentes conclusões sobre a suficiência de provas de terceiros: parte das representadas foi condenada com base em e-mails sobre o conluio em que figuravam como destinatárias em conjunto com a presença e/ou menção em atas de reunião do cartel, enquanto outra parte das representadas mencionadas indiretamente em ata não foi condenada por insuficiência de evidências.

Além disso, outros casos, como o do cartel no fornecimento de sacos de lixo em licitações públicas, demonstram que a existência ou não de outras explicações plausíveis também é um fator considerado na avaliação de provas unilaterais.

Assim, a posição geral mantida pelo tribunal é a de que evidências unilaterais que não oferecem vínculo inequívoco entre os representados e as práticas ilegais [são insuficientes, pois p]ara uma condenação em casos de cartel, é crucial a apresentação de provas mais concretas.

Conclusão
A análise dos precedentes permite concluir que, ao julgar casos de cartel, o Tribunal do Cade enfatiza o uso cauteloso de provas indiretas, unilaterais ou de terceiros que, normalmente, não são suficientes por si só para fundamentar uma condenação, mas, em casos excepcionais, tem reconhecido a possibilidade de juízos condenatórios fundados exclusivamente em provas indiretas.

Nestes casos, entretanto, os conselheiros indicam que o uso exclusivo de indícios limita-se aos casos em que haja um conjunto probatório extenso, apto a indicar a configuração de uma conduta colusiva, e não existam explicações alternativas plausíveis para as evidências indiretas apresentadas.

A adoção exclusiva de provas indiretas ou meros indícios para embasar decisões condenatórias merece, contudo, ponderações, especialmente em casos de acusações por participação em cartéis. Primeiro, porque a condenação com base nesse padrão de prova pode gerar efeito indesejado à própria autarquia: a judicialização de decisões do Cade.

Ações anulatórias contra tais condenações são mais prováveis quando se considera que houve uma flexibilização do padrão de prova pela autoridade concorrencial, tendo em vista o entendimento consolidado no STJ pela possibilidade de anulação de decisões administrativas em razão de questões processuais [1], inclusive probatórias, como a decisão condenatória do Cade anulada no REsp 1.979.138/DF por violação ao devido processo legal no indeferimento de pedido de produção de prova pericial [2].

Nesse sentido, cabe pontuar que o Tribunal do Cade não é limitado a apreciar provas apresentadas pelas partes, mas possui também a prerrogativa de solicitar a produção das provas que entender pertinentes [3].

Assim, não há óbices a que o tribunal, diante de um conjunto probatório composto somente de provas indiretas ou unilaterais, determine a produção de provas suplementares que entenda necessárias. Contudo, o exercício dessa prerrogativa não foi comumente observado nos processos analisados de 2022 a 2023.

Além disso, a pena principal, conforme prevista no artigo 37 da Lei 12.529/2011, pode gerar efeitos secundários. É o caso da aplicação de multas desproporcionais, o que já foi criticado pelo STJ em diversas oportunidades [4], nas quais determinou-se a observação do princípio da preservação da empresa, a fim de que as sanções não inviabilizem as atividades empresariais.

Os impactos dessas condenações, contudo, vão além das multas e abrangem na maioria dos julgados a imposição de penas acessórias previstas no artigo 38 da Lei 12.529/2011, como a proibição de contratar com o poder público e a inelegibilidade para receber financiamentos de instituições públicas.

Assim, a condenação por meio de provas indiretas e/ou indícios coloca em xeque a necessidade de um padrão probatório rigoroso, o qual é fundamental para que qualquer penalidade imposta reflita, também, o princípio da individualização da pena.

Este princípio visa assegurar que a punição atribuída a cada indivíduo não apenas expresse a reprovabilidade de sua conduta e desencoraje práticas similares no futuro, mas neste caso é relevante também para que se preserve as atividades empresariais legítimas, em linha com o princípio da preservação da empresa.

Portanto, esses princípios devem ser observados para que as sanções aplicadas cumpram o papel de defesa da concorrência, mas sem que esse objetivo seja buscado ao atropelo de garantias processuais e direitos fundamentais.

[1] E.g.: REsp 934.608/RS, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 17/04/08.

[2] REsp 1.979.138/DF, 1a T., rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 08/11/22.

[3] Lei 12.529/2011, art. 11, V.

[4] E.g.: EDcl no AgInt no AREsp 1.470.633/SP, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 30/06/2021; AgInt no REsp 1.589.661/SP, Rel. Ministro Gurgel De Faria, DJe 24/03/2017; Pedido de Tutela Provisória n. 3.335 – ES, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, DJe 09/04/2021.

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