Decisão do STJ sobre injúria homofóbica reforça proteção contra discriminação

*Originalmente publicado em JOTA.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu decisão significativa ao tratar da caracterização da injúria homofóbica, mesmo quando a vítima não se identifica como homossexual. No julgamento do Habeas Corpus 844.274, o STJ afirmou que "não é porque a vítima é heterossexual que não pode sofrer homofobia".

O tribunal concluiu que a injúria foi configurada quando o acusado, acreditando que a vítima fosse homossexual, proferiu ofensas utilizando termos pejorativos e preconceituosos direcionados a um grupo minoritário e estigmatizado. Essa decisão sublinha a importância de proteger a dignidade das pessoas contra ofensas baseadas em estereótipos e preconceitos, independentemente da veracidade da orientação sexual percebida.

No Brasil, a proteção contra injúrias homofóbicas encontra respaldo na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, reconheceu a omissão inconstitucional do Congresso Nacional em criminalizar a homofobia e a transfobia.

O STF determinou que "atos de homofobia e de transfobia constituem concretas manifestações de racismo, compreendido este em sua dimensão social" (STF, ADO nº 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello). Assim, ao tratar do presente caso, o STJ reafirmou que as ofensas homofóbicas proferidas pelo acusado configuraram injúria, independentemente da real orientação sexual da vítima.

O tribunal destacou que o crime de injúria qualificada, previsto no artigo 140, § 3º, do Código Penal, é caracterizado quando a ofensa atinge a honra subjetiva da vítima utilizando-se de elementos preconceituosos relacionados à identidade de grupos sociais vulneráveis e minoritários. 

Esse entendimento do STJ está em plena consonância com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), particularmente no caso Flor Freire vs. Ecuador (série C, n. 315). Nesse julgamento, a Corte Interamericana abordou a discriminação com base na percepção de orientação sexual, mesmo quando essa percepção é incorreta.

No caso, Homero Flor Freire, que não se identificava como homossexual, foi submetido a tratamento discriminatório por seus superiores militares, que acreditavam que ele era homossexual. Essa percepção resultou em ações disciplinares severas que afetaram profundamente sua carreira e dignidade.

A Corte IDH afirmou que:

"Ha establecido que la orientación sexual de las personas es una categoría protegida por la Convención" (Para. 118) e que qualquer diferença de tratamento baseada nessa percepção deve ser considerada discriminatória, enfatizando que “[l]a discriminación por percepción tiene el efecto o propósito de impedir o anular el reconocimiento, goce o ejercicio de los derechos humanos y libertades fundamentales […] independientemente de si dicha persona se autoidentifica o no con una determinada categoría”.

Assim, o foco principal está na conduta discriminatória do agressor, que age com base em percepções – corretas ou equivocadas – sobre a identidade da vítima e viola direitos fundamentais, pois a orientação sexual, seja real ou percebida, é uma categoria protegida pelo artigo 1.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 

No mesmo sentido entenderam outros organismos internacionais como o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais no General Comment 20, para. 16, a Comissão Africana de Dirietos Humanos e dos Povos na Resolução sobre a Proteção contra a Violência e outras Violações de Direitos Humanos de Pessoas com base na Orientação Sexual ou Identidade de Gênero, e o Alto Comissariado das Nacões Unidas para Direitos Humanos no Report On Discriminatory Laws And Practices And Acts Of Violence Against Individuals Based On Their Sexual Orientation And Gender Identity

Esse entendimento é crucial para a proteção efetiva de pessoas LGBT e daqueles que, embora não se identifiquem como tal, são alvo de discriminação e preconceito com base em estereótipos. Em consonância, o STJ afirmou que "para a configuração do delito, basta que seja dirigida a uma pessoa, ferindo sua dignidade e decoro, e que contenha termos odiosos à orientação sexual ou identidade de gênero de alguém, sendo reais ou supostas".

Além disso, o STJ enfatizou que o direito à liberdade de expressão, embora fundamental, não pode ser usado como justificativa para a propagação de discursos de ódio que visem inferiorizar ou discriminar indivíduos ou grupos sociais vulneráveis.

O tribunal concluiu que ainda que “[o] direito à liberdade de expressão [seja] um dos mais valiosos no ordenamento jurídico brasileiro, [...] a liberdade que propaga o ódio e nega a igualdade entre as pessoas é incompatível com o Estado Democrático de Direito". Essa conclusão reflete um entendimento claro de que a dignidade humana e a proteção contra a discriminação devem prevalecer sobre a liberdade de expressão quando esta é usada para perpetuar preconceitos e desigualdades.

A convergência entre as decisões do STJ e da Corte IDH reforça a importância de proteger os direitos das pessoas LGBT e de todos aqueles que possam ser vítimas de discriminação com base em percepções equivocadas.

A decisão do STJ, ao se alinhar com a jurisprudência da Corte IDH, demonstra um compromisso firme com a promoção da igualdade e a defesa dos direitos humanos fundamentais. Reconhecer que a ofensa homofóbica pode ser perpetrada independentemente da orientação sexual real da vítima é um avanço significativo, em conformidade com os princípios constitucionais e os tratados internacionais de direitos humanos.

 

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