A proteção de dados como direito humano

Mais de 4 bilhões de pessoas estão conectadas à internet atualmente, fornecendo constantemente seus dados e metadados indiscriminadamente a quem souber utilizá-los. O uso exponencial de dados em meios online e offline deixou o tema da proteção de dados em voga na última década. Esse tópico ganhou destaque especial na mídia após as revelações de Edward Snowden sobre as técnicas de monitoramento dos Estados Unidos adotadas pela National Security Agency (“NSA”) e após o escândalo sobre o uso indevido de dados de usuários do Facebook pela empresa Cambridge Analytica.

O conceito de proteção de dados vem sendo usualmente atrelado ao conceito da privacidade, direito que é reconhecido internacionalmente como um direito humano, ao menos desde a Declaração Universal de Direitos Humanos em 1945. Não obstante, apesar da flagrante influência da proteção de dados no dia a dia de indivíduos ao redor do mundo, cortes de direitos humanos ainda relutam em reconhecer a proteção de dados como parte deste rol de garantias fundamentais[1].

Na Europa, por exemplo, o Artigo 8 da Convenção Europeia de Direitos Humanos garante o direito à vida privada e familiar. Apesar de sua designação pouco assertiva, a Corte Europeia de Direitos Humanos (“CtEDH”) já utilizou a doutrina do direito à privacidade, à luz do Artigo 8, em casos envolvendo fotos indesejadas, sigilo de correspondências, e até mesmo retificação de nome e sexo no registro de pessoas transexuais.

Em casos emblemáticos como Big Brother Watch v. the U.K., a CtEDH já teve a oportunidade de reconhecer a proteção de dados como direito fundamental e humano, e incluí-la no rol de direitos do Artigo 8. Os fatos que deram pano de fundo ao caso Big Brother Watch é o conhecido escândalo revelado em 2013 por Edward Snowden envolvendo as ações do governo Norte-Americano e a NSA.

As revelações de Snowden não se limitaram a expor as técnicas indevidas de investigação e monitoramento empregadas pela NSA, mas foram além. Snowden indicou que outras agências de segurança, como o Government Communications Headquarters (“GCHQ”) do Reino Unido, também empregavam métodos de vigilância potencialmente ilegais.

Nesse sentido, em Big Brother Watch, coube à CtEDH analisar a legalidade do compartilhamento de informações entre a NSA e a GCHQ, bem como a possibilidade do governo britânico de interceptar em massa a comunicação de seus cidadãos. Contudo, a abordagem da Corte Europeia acabou sendo mais tímida do que o esperado por estudiosos e ativistas da área, não abordando de forma direta a proteção de dados.

É evidente a ligação dos fatos deste caso com a privacidade dos indivíduos envolvidos, uma vez que houve monitoramento constante por parte da NSA. Diversas pessoas ao redor do mundo foram monitoradas sem que houvesse suspeita de violação à lei, ou controle judicial que mitigasse abusos. Ademais, para além do mero monitoramento, houve o compartilhamento indevido dessa informação com agências de segurança terceiras, como a GCHQ.

Em segundo plano, pode-se inclusive vislumbrar conexão entre as ações da NSA e GCHQ com questões vinculadas às estruturas da democracia moderna. As ações de monitoramento de agências de segurança desbalanceiam a correlação de forças entre Estados e seus cidadãos. Conforme exposto pela CtEDH na sentença do caso Big Brother Watch, há o risco de que um sistema secreto de vigilância estatal destrua um regime democrático, sob o falso pretexto de protegê-lo (Big Brother Watch v. the U.K., §308). Não obstante tal conclusão, a Corte não se manifestou sobre a correlação direta entre privacidade, dados pessoais e democracia.

A correlação entre democracia e os direitos humanos é largamente explorada por tribunais internacionais e pela doutrina especializada. Reconhece-se, inclusive, o direito à participação em eleições livres como um direito humano. Especificamente, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos garante o pleno exercício de direitos políticos, o que inclui “representantes livremente eleitos,” “livre expressão da vontade dos eleitores,” e “condições gerais de igualdade” quando concorrendo a funções públicas.

Em paralelo, e ainda sob investigação, os fatos apurados do escândalo da Cambridge Analytica tem potencial para demonstrar uma ligação ainda maior entre a proteção de dados, direitos humanos, e democracia, visto que as informações pessoais de diversos usuários do Facebook foram usados para guiar campanhas político-partidárias ao redor do mundo.

Uma vez que o uso de dados pessoais tende a aumentar, espera-se que as cortes de direitos humanos desenvolvam doutrina e jurisprudência capazes de reconhecer a importância da proteção de dados pessoais, reconhecendo-a como um direito humano derivado da privacidade e do direito a um regime verdadeiramente democrático.

Em julho de 2019 a CtEDH aceitou reapreciar o caso Big Brother Watch levando-o para a Grand Chamber. Com a revisão da decisão atual, a expectativa é que a Grand Chamber se manifeste tanto sobre o uso indevido de dados pessoais quanto sobre possíveis impactos do mau uso de dados pessoais para regimes democráticos.

[1] Em razão do escopo limitado deste trabalho, não serão abordados os possíveis motivos das Cortes de Direitos Humanos para o não reconhecimento da proteção de dados como direito humano, bem como as potenciais consequências que este reconhecimento trariam. Tais tópicos serão abordados oportunamente em outros trabalhos.

*Co-autoria com Juliana da Cunha Mota. Originalmente publicado em JOTA.

Ao usar nosso site, você concorda com nossa Política de Privacidade e uso de cookies.